domingo, 24 de março de 2013

O Estranho

Acordei com um barulho de carro ao longe, levantei da cama assustada, e olhei pela janela, achei melhor me vestir, havia dormido além do que deveria. Eu estava mesmo muito cansada... Era hora de encarar o frio lá fora.
Por sorte havia aquecedor na casa, tomei um banho quente, troquei de roupa e desci, engoli alguma coisa, embora estivesse sem fome.
Tinha um encontro inevitável àquela manhã e precisava mesmo sair, sem horas para voltar por sinal.

Estranhei que ao tentar passar pela porta ela estivesse trancada, não me lembro de tê-lo feito na noite anterior, alias da noite anterior eu me lembro de pouquíssima coisa.
Onde estaria a cópia da chave? Ah é verdade também tinha que tentar encontrar a tal da Amélie Collet em Champ Les Sims, a cidade era pequena e se eu perguntasse a alguém na praça, de repente pudessem me informar, lembraria de fazer isso mais tarde, quando por lá passasse.
Mesmo com toda aquela neve o dia tinha aberto, estava ensolarado, dei um jeito na porta e com sorte consegui abri-la, não lembrava mesmo onde havia posto a chave. A cidade era pequena e não correria o risco de ser assaltada, isso com certeza era uma coisa que há muitos anos havia deixado de acontecer em Champ Les Sims.

Ali estavam eles...
Fechei os olhos por um instante como se estivesse vendo o passado, um passado tão feliz que fora interromper-se de maneira tão trágica. Olhei fixamente para pequena imagem na lápide, onde minha mãe sorria, passei o dedo de leve sobre seu rosto alegre. Naquela época eu também era feliz.                                                                                                                                  

- Você esta bem? – alguém pronunciou atrás de mim.
Levantei assustada e recuperado o susto, respondi.
- Estou sim... Apenas vagando um pouco pelo passado.
- Ela era muito bonita! – falou ele indo em direção a lápide para a qual eu me encontrava compenetrada minutos atras. – Você se parece muito com ela.
- Há quanto tempo estava ai?
- Pouco menos de dez minutos, você estava tão absorta, não quis interromper.
- Ela era linda!
- Você também o é... Mas me parece triste
- É... Esse ano bem mais do que os anteriores e provavelmente bem menos que os próximos... Isso é mau. De repente foi um erro ter voltado, mas era preciso, eu tinha que voltar! – respondi com certa convicção.

                           

- Quer conversar sobre isso? – senti que ele procurava as palavras certas com intuito de se aproximar. Estendeu-me as mãos e sem mais me conter abracei apertado o estranho que me oferecia colo.
- Você não entende, é como se eu tivesse me perdido aqui no dia em que tudo aconteceu, e agora eu não posso continuar fugindo, assim como não deveria ter fugido e nem me mantido distante de tudo, inclusive de mim mesma. Tudo isso teria me machucado um tempo, por que me lembraria de tudo o tempo todo, mas depois fatalmente eu iria me acostumar, e hoje já estaria livre.
- Não sei ao certo o que possa perturbá-la tanto na morte de sua mãe, mas se é o que sente...

- Um dia de repente quando eu puder conviver com esta realidade eu conte a você. – Soltei-me dos braços dele e voltei à lápide – Quanta ironia traz a vida... Eu nada sei de ti ainda assim, faço promessas de dividir contigo uma dor que eu nunca dividi com ninguém.
- Quer sair daqui? – Dessa vez foi eu quem senti os braços dele, passando sobre o meu ombro, mas não resisti.
- Que horas são? Devo estar aqui a bastante tempo já.
- E se continuar ai parada, vai acabar congelando... Acredite. Venha, levo você ate a Catânia, nada que um chocolate quente não resolva.

- Quem é você hein?
- Um dia de repente eu conte a você. – reconheci propositalmente minhas palavras nas dele.
- Não posso ir ate a Catânia, tenho compromisso as 2:30 na produtora.
- Então acho melhor se apressar.
- Você não é daqui é?
- Pareço Francês?
- Não. Vai pelo menos me dizer seu nome?
- Vai me deixar acompanhá-la ate a produtora?
- Tenho outra alternativa?
- É... Penso que não.
Ele segurou minha mão e fui me deixando guiar por ele enquanto conversávamos.

    Eram 3:00 horas quando entrei na produtora acompanhada de uma pessoa cujo nome eu não fazia idéia de qual fosse.  Eu conseguia vê a interrogação gigante sobre a cabeça do Yves tentando adivinhar quem era a pessoa ao meu lado e se eu tivesse o dom de lê mentes, conhecendo-o como o conhecia, saberia exatamente tudo o que estaria se passando na cabeça oca dele naquele momento.

Sabia de sua evolução na área de costura, mas não fazia idéia de que meu amigo era tão prendado também na produção daquela bebida dos deuses. Com o inverno as videiras estavam adormecidas, impossibilitando sua colheita, caso contrario ele teria feito um passo a passo comigo desde a colheita do fruto até a fase final da produção. Eu estava satisfeita, em tomar apenas conhecimento de como produzira bebida, era uma aluna dedicada, e dadas as informações necessárias troquei de roupa e fomos para a fase final...
- Tem certeza mesmo que pretende colocar seus pezinhos ai, moça?
- Porque não teria? Não cheguei ate aqui, pra desistir por não querer me sujar.
- Tem razão... De qualquer forma não vou me arriscar e ficar perto de você. – Ele procurou um assento um pouco distante e de lá se divertia, vendo-me machucar desajeitadamente as uvas na tina.

Eu poderia dizer que aquele era um trabalho divertido, me esqueci por algumas vezes que se tratava da fabricação de néctar, ao longe sentia os olhos do Yves, hora sobre mim, hora sobre o meu amigo desconhecido, que por sua vez também me observava de longe.
Eu estava maravilhada!
Nunca imaginei que uma tarde na produtora fosse me render tão bons momentos ao lado de um estranho...
Ele me ajudou sair da tina...
- Valeu à pena?
- Muito.
- Você estava tão linda! – corei ao ouvir as palavras dele – Não parecia a moça melancólica que encontrei naquele cemitério.
- Vai me dizer seu nome agora?
Ele sorriu...
- Se eu te disser meu nome, vai fazer alguma diferença? Será que não está sendo perfeito assim? Como dois desconhecidos? Sabe você fica fascinante quando sorri. Deveria sorrir mais vezes.
- Já vi que não vou mesmo conseguir arrancar de você esta informação.
- Por que arrancar quando se pode conseguir?


Confesso que não entendi o que ele quis dizer com aquelas palavras, não havia nada que eu pudesse oferecer a ele em troca dessa informação que se tornaria tão irrelevante quando eu voltasse a Bridge ou pra casa. Então olhei o relógio e me dei conta da hora que já estava bastante avançada.
- Preciso ir...
Ele ficou parado perto da tina como alguém que tinha algo ainda a dizer, mas não tentou impedir quando sai.

Falei com Yves sobre aquela aula incrível... A companhia dele aquela tarde e a dedicação com que me passou seus conhecimentos, ele por sua vez parecia mais interessado em saber quem era a pessoa na minha companhia, sorrimos juntos... E me despedi prometendo encontrá-lo novamente antes de voltar para Bridge.
                          
- Para alguém que me concedeu o prazer de sua companhia durante uma tarde inteira, não creio que irá negar-me a honra de levar você em casa.
- Ousado de sua parte, e se eu te dissesse um ‘não’?
- O que me restaria fazer se fosse o caso, a não ser recolher-me a minha insignificância?
- Farei mais que isso... Toma comigo um chocolate quente na Catânia?
- Só se for com croissants!
- Fechado!

Naquela noite fomos a Cafeteria, não sei a quanto tempo eu não me divertia na companhia de alguém, de um homem, de um quase desconhecido. Ele era ousado, me fazia sorrir por que eu tinha o sorriso mais lindo que ele já tinha visto em alguém. Não falamos de passado, éramos dois estranhos nas ruas de Paris vivendo um presente que havia chegado para nós como uma dádiva estranha... E assim entramos noite adentro, com canecas de chocolates quentes e croissants amanhecidos.


Sob a luz inebriante da lua e diante da fonte de águas congeladas, sentei no banco.
- Está frio não é?
Ele sentou do meu lado e segurou minhas pernas colocando-as sobre as dele, tirou meus sapatos e levou suavemente sua boca até os meus pés gelados, soprando sobre eles um hálito morno enquanto acariciava-os com as mãos, aconchegando-os entre elas.
Nunca ninguém tinha feito algo parecido, mas cada momento ao lado dele me deixava fascinada. Não sei explicar o que senti com aquele gesto. Ele era só um estranho, e eu uma mulher revestida por uma armadura incapaz de absorver alguma espécie de sentimento por alguém naquele momento.
                                     

- Tem certeza que não quer companhia?
- Tenho.
- Vai ficar bem?
- Com meus CDs e meus livros e quem sabe uma taça ou outra de néctar.
- Devo te agradecer...
- Você foi maravilhoso.
Evitamos qualquer outra palavra naquela hora, pois nada traduziria aquele momento, e sem mais que pudesse ser dito, nos despedimos com olhares e um singelo beijo no rosto.                                                          
                          
Eu já tinha aberto a porta de casa, quando do carro ouvi ele falar:
- Marcello!!!
- O que?
- Marcello. É esta a resposta para a sua pergunta, Morton – e acelerando o carro sumiu em meio a escuridão.
                        
Devo dizer que entrei maravilhada... Eu tinha vivido um sonho ou quase isso. Fui até a cozinha, peguei um copo e subi as escadas, coloquei uma garrafa de néctar sobre o criado-mudo, no Ipad uma musica. E na cabeça... Nesta 'o estranho' se fazia presente em uma sucessão de várias imagens, aquele dia era um filme, onde eu repetidamente voltava, pra apertar o play. Troquei de roupa e ao descalçar os sapatos lembrei-me do episódio na praça.

- ‘Marcello’... Então era esse o seu nome. – Sorri enquanto balbuciava lentamente cada letra.
Aquela noite, antes de adormecer me perguntei por inúmeras vezes o que de errado havia comigo. Porque tanto encanto se no fundo eu sabia que era só isso? Porque não conseguia me dá uma nova chance? Tantas perguntas, nenhuma resposta... E em meio a tantas indagações, adormeci.

domingo, 17 de março de 2013

Encontros



Esperava estar em Champ Le Sims por volta do meio dia, mas o inverno como sempre havia chegado rigorosamente aquele ano, e a quantidade de neve acabou por atrasar o meu voo, do alto eu mal conseguia vê as belezas de minha amada cidadezinha. Acreditava que aquele fosse o primeiro inverno que passaria longe dos meus fantasmas e das inúmeras recordações que eu tinha daquele lugar, não imaginei que tão cedo colocaria novamente os pés naquele solo... Mas estava tão feliz por isso, que por um instante senti a tristeza se dissipar, dando lugar a um sorriso.


Teria nevado no dia anterior, e com as estradas escorregadias o taxi ia lento, enquanto da janela eu ia revendo as ruas e vielas... Algumas com suas casas já iluminadas pelas luzes de Natal. Tudo igual como sempre e todos os anos.
- Monsieur, S'il vous plaît suivez par Montparnasse!
- Oui, ma demoiselle!¹
Pouquíssimos em Champ le Sims falavam português, e mesmo tendo vivido minha vida inteira ali, dominava tão bem outros idiomas quanto o meu de origem, e já havia me habituado com o português usado em Bridge.
Ali estava a casa... Intacta. Igual eu havia deixado...


Pedi que ele parasse o carro, e desci... Nostalgia e tristeza eram os dois sentimentos presentes em mim naquele momento. Tantos anos vividos ali, e de repente tudo deixado pra trás, por um momento acreditei que a chave ainda estivesse no lugar onde eu costumava deixar antes de sair, procurei por ela entre uma brecha e outra da caixa do correio, então me dei conta que desta vez eu não havia saído só por alguns dias, e que a intenção não era de voltar.
Na soleira da porta ainda estava o tapete de “Boas vindas” e o sino dos ventos cantantes na janela, aquele barulho havia me irritado por um tempo enquanto criança, até compreender que segundo a minha mãe me traria bons sonhos.


Parecia estar alheia ao mundo enquanto olhava tudo a minha volta, como numa inspeção de reconhecimento. Observei tudo janela adentro, e tudo permanecia igual, os tapetes, as cortinas, os móveis - agora cobertos - mas acrescidos de um cheiro de coisas que ficaram guardadas em um baú. Cheiro de coisas que pararam de viver por algum tempo. Compreendi que eu e a casa tínhamos muito em comum, como uma casa fechada, eu estava exposta para alguns moradores, mas fechada a qualquer morada.
E assim eu fui sendo ao longo do tempo, e me tornando cada vez mais reservada, sem saber ao certo até que ponto tudo aquilo seria bom pra mim.


Dei a volta na casa... A área da piscina ainda tão bem conservada. Os dias de verão ali, me aqueceram a alma, na companhia do gato, até então desaparecido, sobre a sombra das árvores. O outono havia chegado e partido e a casa não pareceu sofrer as mudanças da estação. Pelo chão... Nenhuma folha, apenas a neve começava a se acumular.
O zelador que eu havia contratado parecia estar cuidando muito bem dali, pelo menos da parte externa, notava-se o carinho com que ele havia se disposto, vendo as roseiras todas bem aparadas, embora cobertas de neve. De uma coisa eu tinha certeza... A de ter deixado minhas melhores lembranças em boas mãos.


O dia começava a cair, e o frio a ficar incessante, deveríamos estar a qualquer numero abaixo de zero, logo começaria a nevar. Era melhor me adiantar antes que o Senhor do taxi decidisse se cansar daquela espera e me deixar ali plantada, começava anoitecer e eu precisava logo me recolher.
Eram pouco mais de 6:00 horas quando cheguei a tal casa, não tive problemas com a localização, conhecia aquela cidade com a palma da mão, o problema maior foi chegar e não encontrar a Senhora - com quem eu havia fechado o contrato -  a minha espera... Tentei ligar e nada, sem sinal, isso sem sombra de dúvidas estaria relacionado a toda aquela neve.


Começava ficar preocupada, não fazia ideia de onde encontrar a tal Amelie Collet, ainda mais àquela hora e com toda aquela neve começando a cair... Eu teria congelado ali fora se devido a minha insistência não tivesse acabado por esbarrar na porta e perceber que ela se encontrava destrancada.
Eu tinha certeza que se tratava da mesma casa do anuncio, e se ela me aparecesse mais tarde, não tinha razões para reclamar caso eu tivesse entrado sem sua permissão. Antes dentro do que congelada. Pensei.
Mais tarde eu tentaria novamente entrar em contato.


Uma lareira!
- Gosto de olhar o fogo. Ele traça formas maravilhosas, tingindo-as de cores incríveis. Nem na aquarela do maior pintor do mundo é possível encontrar os tons que se fundem nos semitons, ou até nos contrastes harmoniosos que faz fluir da madeira. É um quadro vivo. Pena que dure tão pouco.
Não me importava com o tamanho da casa, sabia que ali eu passaria boa parte do tempo com meus desenhos, alguns livros e quem sabe um bom néctar para aquecer os dias nevoentos que se seguiriam durante aquele meu inverno em Champ Le Sims.


Subi com as malas e coloquei-as no quarto, ao sair me deparei com uma porta à esquerda da minha, abri pensando que fosse um banheiro, mas não... Para minha surpresa um perfume envolvente se fez sentir cada vez mais nítido nos lençóis e no ambiente, provavelmente por se encontrar fechado o quarto.
Não devia ter muito tempo que a casa havia sido entregue. Embriagada pelo perfume delicioso... Deitei e devido o cansaço da viagem, adormeci por pouco menos de uma hora. Acordei com um vazio no estômago. Troquei de roupa e resolvi descer.


Estranhei que o último morador houvesse deixado suprimentos na geladeira suficientes para alimentar uma família – ainda que pequena – por uma semana inteira. Senti falta de três dos meus ingredientes favoritos, cogumelos, mel e limões... Eu não conseguiria passar uma semana sem minhas deliciosas omeletes de cogumelos e muito menos minha torta de limão, nada que uma visita ao mercado no dia seguinte não resolvesse.
Já me preparava para o meu programinha noturno diante da lareira...
- Ah legal... Não temos cogumelos, não temos limões, não temos mel e para completar, também não temos néctar, era só o que me faltava! – resmunguei abrindo a geladeira – “cereal com yorgute.” Foi tudo o que eu consegui ingerir aquela noite. Os meus ingredientes especiais poderiam esperar, mas o néctar não, o néctar era essencial e isso eu saberia onde encontrar. Então por que não dá um pulo na produtora? Nem era tão tarde, além do mais a produtora nunca fechava. Era lá onde se fabricavam as mais deliciosas e refinadas garrafas da bebida dos deuses, envelhecidas por sinal em seus porões. Levantei decidida a ir à produtora, e com tanta pressa acabei deixando para trás o prato sujo sobre a mesa.


- Yves!!!
Não acreditei mesmo quando o encontrei por trás do balcão da produtora.
- Mon chér et toujours belle, Morton!² – Disse enquanto me beijava a face naquele típico cumprimento francês.
Não preciso dizer que Yves era um velho amigo, estávamos sempre ‘inventando’ alguma coisa no tempo que passávamos juntos, ele era meu ‘costureiro cobaia’ e devo confessar que com o tempo ficou bom nisso, infelizmente esta não era uma profissão muito aceita pelos seus familiares, que para impedir que o filho fosse adiante com os seus propósitos, colocaram ele a frente dos negócios de família, principal ramo na venda e produção de néctar. E foi assim que de alfaiate ele passou a vendedor, o que havia de bom nisso? Bem... Ele agora oferecia cursos na produção de néctar, não estava feliz com o resultado de seus esforços, mas era o que tinha pelo momento a oferecer.
Em minha opinião ele estava se perdendo! Aquele garoto tinha futuro.


Fui ate uma das prateleiras para vê o que tinha disponível, era inaceitável que tantos néctares e nenhum, contivessem fruta flambada com cranerlet nuala em sua produção, ele me disse para descer e verificar nas prateleiras logo abaixo no porão da produtora... E se caso precisasse de ajuda, estaria a minha disposição.
Já tinha ido a produtora outras vezes e conhecia bem o porão,  mas sempre desconfiei que aquelas paredes guardavam algum segredo, sentia uma espécie de vertigem cada vez que descia aquelas escadas, mas adiante um casal discutia o desaparecimento de um amigo, pelo pouco que ouvi a moça se chamava Meg, parecia preocupada... Quanto ao cara, nem tanto.


A prateleira dos fundos perto do banheiro era minha última alternativa, o casal tinha subido para a parte superior da produtora, pareciam mesmo bem preocupados, então me dei conta que estava praticamente sozinha ali embaixo, teria chamado o Yves para que me fizesse companhia, caso o som abafado que vinha do banheiro não tivesse me chamado atenção.
Alguém parecia estar com problemas, ou muito encrencado.


Por um instante tive a intenção de bater e perguntar se estava tudo bem, mas acabei esquecendo os ruídos no interior do banheiro quando o celular deu sinal de vida.
Era a Jessica...
- Eu sabia! Liguei pra sua casa... Seu Mordomo informou que a Senhorita tinha viajado... Alguma coisa já me dizia que faria isso...
- Jessica... Posso falar com você depois? A chamada está horrível! Também preciso subir, o lugar em que estou não me agrada muito, mas depois te conto... Pode ser?
Naquela hora ouvi a voz do Yves dizendo que havia encontrado 3 garrafas do néctar em uma das prateleiras que eu tinha esquecido de inspecionar...
- Tudo bem... Vê se liga mesmo!
- Ligo, prometo... Bjos
Desliguei o celular e subi as pressas esquecendo-me de verificar o tal barulho que vinha do banheiro.


Peguei as garrafas com Yves, que depois de me contar mais sobre o seu trabalho na produtora, ficou de me ensinar no dia seguinte os segredos para se fabricar um bom néctar. Claro que eu não perderia essa aula gratuita.
Também não tinha nada de muito interessante pra fazer, no dia seguinte e com previsão de neve, eu que não ficaria o dia inteiro em casa... Já havia me habituado aos invernos de Champ le Sims.
Marcamos de nos vê por volta das 2:30 da tarde, quando ele teria uma pequena folga e um pouco mais de tempo para mim...
- Rendez-vous demain, mon ami!
- Rendez-vous  demain, ma chérie!³


Não fui para casa aquela noite sem antes passar pela cafeteria Catânia... Sentia falta do chocolate quente com os croissants incríveis de lá.
Mal havia me alimentado desde que cheguei, e pensando no frio que faria, seria melhor prevenir do que remediar. A praça estava iluminada e linda como todos os anos ficava a cidade coberta de neve com as casas e suas luzes multicoloridas, lembrei-me de como tudo aquilo havia me encantado um tempo e perdido também o encanto com ele.
- Invernos... – murmurei baixinho.


Quando entrei em casa não fazia ideia do sono que sentia, a intenção era passar um fim de noite como nos velhos tempos, um programinha diante da lareira, e eu havia me deslocado até a produtora por que sem o néctar não seria perfeito e muito menos como nos velhos tempos.
Não conseguia manter meus olhos abertos, e se eu piscasse, provavelmente acordaria no dia seguinte e quando por um instante deitei na cama, adormeci profundamente. E só no dia seguinte eu acordei...

Nota:
Montparnasse - Bairro de Paris na França, localizado na margem direita do rio Sena.
1- Senhor, por favor, siga por Montparnasse! - Sim, Senhorita!
2- Minha querida e sempre bela, Morton!

3- Até amanhã, meu amigo! - Até amanhã, querida!

sexta-feira, 8 de março de 2013

Voltando ao passado


 Eu tinha livre o resto da tarde, enquanto esperava impacientemente pela ligação da Jéssica, confirmando nosso encontro à noite depois que ela voltasse do trabalho, não havia vestígios e nem previsão de chuva, se continuasse assim teríamos um encontro agradável.
Estava feliz em poder dividir mais do meu tempo com minha amiga, agora que morávamos na mesma cidade então... Não conseguia pensar em mais ninguém que eu pudesse contar. 


A Jessica ainda não havia ligado e pra minha distração fui pesquisar sobre as novas tendências de moda no exterior, e assim ia passando o meu tempo enquanto Bertrand ‘lutava’ com as folhas que insistiam em cair das árvores, a área da piscina estava um caos, por vezes a dedicação dele em manter limpo o ambiente, me chamou a atenção, fazendo com que deixasse de lado um pouco o ipad pra observá-lo.
Imaginava ele e toda trabalheira que deveria ser cuidar do jardim a cada outono com aquela quantidade de árvores espalhadas pelos arredores da casa... Pensava que havia sido assim por anos a fio, e ainda assim, ele parecia gostar do que fazia porque não o via reclamar.

Eram quase 7:00 horas e Jessica ainda não havia ligado, levantei e fui tentar colocar em prática os meus dotes de mixóloga, tinha terminado de preparar algumas bebidas quando o meu telefone tocou. Não preciso dizer quem era.
- Não vai dá.
- O que houve?
- O Andrew, quando cheguei do trabalho ele já estava praticamente decidido a ir pra Champ le Sims, achei que ele só fosse amanha, uma vez que ainda estava indeciso entre uma cidade e outra
“Ah é verdade! - Pensei - A cidade estava em polvorosa devido o evento anual de gastronomia, onde chefs de vários países se juntavam para apresentar iguarias diversas de sabores variados e do mais alto requinte. Era uma época em que seria comum encontrar pelas ruas de lá celebridades disfarçadas e pessoas de toda classe e estilo.”
Senti uma nostalgia boba!
- Já sei... O evento de gastronomia... Ele fez uma ótima escolha.
- É bem isso... Deixei-o na biblioteca vendo um lugar pra ficar, estou entrando no banho e já passo ai.
- Não! Espera, deixa que eu passe ai!
- A tá... Então aproveita e traz uma roupa de dormir, te espero!

Desliguei o telefone e subi praticamente correndo as escadas, peguei uma valise e separei algumas coisas a fim de levar comigo...  Preferia mesmo ficar em casa na companhia dela do que sair por ai, meus últimos dias já haviam sido agitados o suficiente, agora a calmaria.
Antes de sair falei com Bertrand... Avisei que não voltaria àquela noite pra casa... Ele parecia ficar preocupado cada vez que eu saia por ai sem rumo. Não devia satisfação de qualquer coisa em minha vida, mas se fosse pra mantê-lo tranquilo o faria sem problema algum.   
                                                                    
 
Jéssica me recebeu com um abraço apertado.
- E o seu irmão? – perguntei olhando em volta
Partiu a pouco menos de meia hora. Por bem pouco você não dá de cara com ele.
- Deve ser mesmo um apreciador da culinária francesa, caso contrário, acredito que não tivesse ido com tanta pressa.
- Tenho lá minhas desconfianças sobre as razões – falou isso com aspecto pensativo - História longa, Vem... Preparei uma comida gostosa pra gente, aproveita e vai me contando o que tem feito desde que chegou e quais loucuras foram essas que você andou se metendo.
- Você fala como se você também não fosse mestre em se meter em confusão. – falei ironicamente


Depois do jantar ela me apresentou a casa... Belíssima por sinal. Tinha uma área externa invejada, e cada cômodo muito bem decorado... Tudo a gosto do próprio irmão, disse que mesmo sendo segura, passou por uma tentativa de assalto recentemente que graças a Deus acabou não dando em nada. Também contei pra ela sobre a agitação dos meus primeiros dias em Bridge, sobre a Quel, o moço no meio da noite, e o meu desconforto em ter que ficar sendo tratada como Senhora, pelo Bertrand. Ela sorriu...
- Você? Senhora?
- Sabe que eu até entendo? Mas isso não deixa de ser um tanto desconfortável, além de me fazer sentir-se com idade bem mais elevada... Era até mais aceitável que ele me tratasse por você.
Enfim... Mais cedo ou mais tarde ele acaba acostumando.
- Ou ele ou você... Não é?
- É... Pelo menos assim eu espero.

Conversamos sobre todas estas coisas, enquanto o sono não chegava, era bem tarde quando decidimos subir... Eu começava a me sentir um pouco sonolenta, ela me acompanhou ate o quarto de hóspede, e certificou-se de que eu estaria bem acomodada.
- Vê se dorme! Não pretendo mais tomar o teu tempo, amanha ainda teremos um longo dia pela frente!
Sorri enquanto ela me dava às costas retirando-se do quarto.
- Durma bem também. 

Foi a última coisa que lembro ter pronunciado antes de deitar na cama e adormecer... Acordei procurando um relógio, ou algo que pudesse me orientar dentro daquele quarto, uma vez que o clima lá fora não ajudava em muita coisa. Troquei de roupa e desci... Encontrei a Jessica na sala de estar, provavelmente falando com o irmão no telefone, quando deu uma pausa na chamada...
- Finalmente acordou! Achei que fosse dormir ainda pelo resto do dia! – falou isso ainda no telefone enquanto eu descia as escadas.
Fiz sinal de ‘bom dia’ e caminhei ate a sala de jantar que ficava logo ao lado, enquanto ouvia o monólogo dela no telefone tentando explicar pra ele que falava comigo e não com um homem.
“Não Andrew!”
“Esta tudo bem sim...”
“A Luma veio dormir aqui em casa...”
“É...”
“Eu tinha ficado de encontra-la ontem à noite, lembra?”
“Eu não estou mentindo, eu não teria por que mentir pra você.”
“Não... Não é nenhum homem que eu coloquei aqui dentro de sua casa...”
“É a Luma sim Andrew.”
“Preciso desligar tá?... Fico feliz que tenha chegado bem e que esteja tudo bem com você, aproveite a viagem. Bjos, também te amo ‘irmãozão’”
Ele parecia gostar tanto da irmã...  Parecia mesmo tão preocupado com a segurança dela.
Por um instante pensei se teria sido mesmo uma boa ideia me meter na casa do Andrew sem ao menos tê-lo conhecido. 
Depois do café, ela me convidou a dar um mergulho...
- Aproveitemos o dia de sol! Em pleno outono isso é quase um milagre.
- Não trouxe nenhuma roupa de banho, o mergulho fica pra outro dia, falando nisso... Conhece algum tatuador por aqui?
- Ta brincando que vai fazer outra tatuagem???
- Não... Remover uma das que tenho.
- Ah ta... Bem... Acho que sim... Tem um estúdio ao lado da biblioteca municipal... Quer ir lá depois?
- Pode ser.
- Acho que tem que marcar, isso não é um daqueles procedimentos complicados não?
- Não muito... Eu creio.
Ela me deixou sentada na pequena mesa que havia ao lado da piscina e subiu resmungando algo do tipo...
- Se você não quer aproveitar esse dia maravilhoso então eu é que não vou desperdiça-lo! Não demoro! 

É possível que ela tenha se distraindo com alguma coisa, ou simplesmente perdeu a vontade de cair na água, por que não demorou até ouvir os passos dela se aproximando e as seguintes palavras
- Definitivamente eu não consigo acreditar que você trocou a piscina por esses seus malditos desenhos!!!
- Já te disse pra não falar assim da minha profissão. – falei meio aborrecida
- Tá... Então reformulando minha frase, definitivamente eu não consigo imaginar que você trocou a piscina e esse dia espetacular por esse maldito Ipad!!!
- Jéssica... É o meu trabalho! – falei, levantando-me da mesa e indo até a borda da piscina.
Vendo que havia se precipitado com as palavras, ela acabou por deixar de lado sua meia indignação e sentando-se a mesa em que eu acabara de levantar, respondeu:
- Desculpa... Eu só queria que você não levasse aqui a mesma vida que estava levando em Champ le Sims.  Trabalho, trabalho e mais trabalho.
- Eu sei, não é isso que eu quero pra mim também, mas só assim eu consigo esquecer um pouco os problemas. Preencher em parte esse vazio.

- Luma... Que problemas? Pára de se torturar! Pára de se culpar! Já fazem anos que tudo aconteceu e eu entendo que você sofra por isso, mas você tem que viver! Viver para você e não em função de um passado remoto!
- Eu preciso voltar lá...
- Não. Você não precisa e você não vai!
- Eu preciso voltar lá Jéssica! Se eu não for eu vou me culpar por isso.
- Não sei onde ‘se torturar’ faz parte da nova vida que você disse que teria aqui.
Ela falou isso com tristeza nos olhos.
- Com um tempo eu vou acostumar. Você vai vê.
- Quando???
- Nossa! O dia está mesmo bem quente, acho que... - Ela interrompeu minha fala.
- Você esta se refugiando no tempo pra não responder minha pergunta.
- Eu não sei!!! Eu não sei Jéssica!!! Eu sinceramente não sei quando!!!
- Você vai não é?
- Não sei te dizer. Essa conversa não me fez bem. E embora eu saiba que você esta certa, eu não consigo ignorar o que essa época significa pra mim.
- Seja qual for tua decisão... Conta comigo tá?
- Se há uma coisa da qual eu tenha consciência aqui... É a de que posso contar com você.
- Sempre.
- Sempre.
Ela me abraçou apertado e com tristeza, sabia que agir por impulso era algo que já tinha se tornado parte de minha personalidade, então não havia nada que fosse capaz de garantir de que amanha nos veríamos novamente.
- Se cuida.
Ela disse da porta, enquanto eu acelerava o carro por volta das 6:00 horas, de volta pra casa.
E chegando em casa a primeira coisa que fiz foi subir para o quarto e procurar no ipad algum imóvel disponível, era sorte que aquelas alturas eu conseguisse encontrar, mas não me custava tentar, se eu iria para Champ le Sims, se precisava mesmo me torturar... Como a Jessica falava, então que não fosse para a mesma casa, não me demoraria por lá muito tempo. O fim do outono trazia cada vez mais plangente a memoria dos meus pais, e essa triste recordação era quem me arrastava como sempre ao tumulo deles com certa devoção doentia.

Com sorte ainda havia uma casa disponível; peguei o único telefone que havia na página e liguei. Uma tal de Amelie Collet, me atendeu... Acertei com ela para o dia seguinte, e comecei arrumar minhas malas... Pelas minhas contas as 12:00 horas do dia seguinte, eu já estaria em Champ le Sims.
Aproveitei o jantar para avisar a Bertrand sobre minha viagem, e a única coisa que ele me perguntou foi sobre quanto tempo eu me demoraria e o que fazer com os recados e ligações que eu viesse a receber...
- Anote todos! E para aqueles que perguntarem sobre mim, avise que breve estarei de volta.

Eram 4:30 da manha  quando eu levantei, o avião para Champ le Sims sairia as 5:30, Eu precisava me apressar, Bertrand já havia acordado pois sabia de minha viagem e não quis deixar-me ir de estômago vazio... Enquanto eu tomava o café que ele havia preparado com tamanha dedicação... Ele colocava minhas malas no carro, Fazia frio lá fora, era manha de inverno.
Mal engoli a comida, já tive que sair às pressas ou perderia o voo, Bertrand me acompanhou até o portão da garagem...
Eu já tinha visto aquela cena em algum lugar! Uma espécie de Dejavú.
- Dê noticias, menina! – Falou isso com certa tristeza, provavelmente achando que eu nunca mais voltaria.
- Darei. - E acenando com a mão, dei partida no carro, de volta ao passado.